24 de março de 2009

Polaco

As pernas de Matias tremiam feito vara-verde. Estava diante de um traficante que exigia uma coisa que ele não poderia cumprir. Afinal, o que ele tinha a ver com isso? Mas não tinha jeito, seus argumentos não eram sequer ouvidos pelo homem magro e com o rosto cheio de cicatrizes que chegava a babar de tanto ódio.

Que coisa louca é essa vida da gente. Há poucas horas atrás, ele estava em sua cidadezinha, sem imaginar que naquele dia iria realizar seu sonho de conhecer o Rio de Janeiro. Agora, o que não imaginava mesmo, é que isso seria o fim de sua curta existência na terra.

Ele chegou na loja em que trabalhava às oito em ponto, como fazia todos os dias. Não gostava muito do emprego, mas em uma cidade pequena como Cordeiro, no interior do Estado do Rio, não havia muito o que escolher.

- Bom dia, Matias! – Disse o gerente com um largo sorriso de apresentador de TV.

Matias estranhou, já que raramente Seu Carlos respondia às saudações matinais, ainda mais assim, tomando a dianteira e com tanto entusiasmo.

- Bom dia, - disse um tanto quanto tímido.

- Tenho ótimas notícias, - disse Seu Carlos enquanto caminhava em direção a ele, que ficou esperando o que viria a seguir.

O chefe aproximou-se e, passando o braço por cima do ombro de Matias, disse:

- Você, finalmente, vai conhecer o Rio de Janeiro.

- Mas eu não sei andar no Rio não, Seu Carlos, ta doido?

- Eu conto com você. O Jairzinho, lá da filial do Rio, quebrou a perna e vai ficar quinze dias em casa. Você vai substituir o garoto.

Por alguns instantes, Matias viu passar por sua mente imagens das praias, garotas de “topless”, bailes funk e outras cenas vistas nas novelas desde a época de menino. O Rio era logo ali, mas para ele que a viagem mais longa havia sido até Nova Friburgo, a Cidade Maravilhosa parecia estar em outro continente.

- E então? O que me diz? – Disse Seu Carlos, ainda com aquele sorriso forçado na cara.

- Sei não. Tô com medo de me perder por lá.

- Meu filho, não tem erro. Toma aqui ô: dinheiro pra passagem e alimentação. Neste papel está o número do ônibus que você precisa pegar quando chegar na rodoviária do Rio. É só descer no ponto final, que é na porta da loja.

- E vou dormir onde?

O sorriso do gerente ficou ainda mais largo.

- No sobrado da loja. Tem um apartamento com quarto, banheiro e cozinha. Coisa fina. Você pode comprar comida no supermercado na praça mesmo. Desse jeito, não tem como se perder no Rio.

Um sorriso disfarçado brotou no canto da boca de Matias. “Ta bom que vou para o Rio e vou ficar só aí nessa tal praça. Vou ver a praia e procurar um baile funk”, pensou ele.

- Seu ônibus sai às dez, portanto você tem duas horas para ir em casa pegar suas coisas e ir para a rodoviária.

- Sim, Seu Carlos. Já estou de partida, - disse Matias, pegando o dinheiro e o papel das mãos do gerente e saindo em disparada porta afora.

Já no ônibus, ele abriu o jornal que comprou na rodoviária de Cordeiro. Queria descobrir logo onde as coisas aconteciam no Rio de Janeiro. Eram apenas quinze dias para sua aventura, portanto precisava aproveitar o máximo possível. Após ler algumas linhas dos classificados, caiu no sono e só acordou quando o motorista bateu no seu ombro.

- Ô rapaz! Já chegamos.

Ele esfregou os olhos e levantou cambaleante. Deu alguns passos, mas voltou para pegar o jornal que havia ficado na poltrona ao lado. Quando desceu do ônibus, ficou olhando aquela gente toda passando apressada de um lado para outro.

- Nem acredito. Estou no Rio de Janeiro, - disse baixinho para si mesmo.

Foi até o ponto indicado por Seu Carlos e pegou o 334 em direção à Cordovil. Às três da tarde, estava em frente à loja e tratou de procurar logo Seu Pedro, o gerente da filial. Foi até um rapaz que estava com uniforme da loja.

- Por favor, o Seu Pedro está?

- Está falando com ele.

- Você é o Seu Pedro? O gerente da loja? – Disse Matias, franzindo a testa. O cara parecia ter a mesma idade que ele.

- Sou eu mesmo. Mas, por favor, pare de me chamar de senhor. Só Pedro está de bom tamanho. E você deve ser o Matias, o funcionário de Cordeiro que veio nos dar uma mão?

- É, - disse ele, ainda estudando a fisionomia de Pedro para ter certeza que não estava brincando quanto a ser o gerente da loja.

- Bom, vou te mostrar a loja e apresentar os outros funcionários. Depois te levo até lá em cima para você ver onde vai ficar hospedado. Só vou precisar de você por aqui amanhã, portanto pode tirar o resto do dia de folga.

- Onde tem um baile funk?

- Baile funk? – Disse Pedro, abrindo um sorriso pela pergunta inesperada.

- É. Onde aquelas meninas gostosas ficam rebolando até o chão.

Pedro não se conteve e caiu na gargalhada.

– Você ta falando sério?

- Tô. Qual o problema? – Disse Matias, fechando a cara.

- Nenhum, nenhum, - disse Pedro, deixando a gargalhada virar apenas um sorriso sem graça.

- Lá perto da minha casa tem um baile que bomba, - disse uma menina morena que veio dos fundos da loja em direção a eles.

- Matias, esta é a Penélope, nossa caixa, - disse Pedro.

- Prazer Penélope, Matias.

- Valeu brother. Legal te conhecer. Ta mesmo a fim de ir no baile?

- É. Eu queria conhecer sim.

- Vou deixar os dois se entendendo enquanto falo com aquele cliente. Depois volto pra te levar até o sobrado, - disse Pedro, se afastando em seguida.

A letra de Penélope estava difícil de ler, mas o pior mesmo era ter que pegar dois ônibus para chegar no tal baile. Depois de alguns minutos decifrando o número do primeiro ônibus, ele caminhou até a rua que passava por trás da loja e encontrou o ponto que Penélope havia indicado. Já estava ali por quase vinte minutos e nada do tal ônibus aparecer. Nem parecia que passava ônibus ali. Carro mesmo passou três ou quatro. No ponto não chegou ninguém. Estava ficando preocupado. Sua mãe nunca havia deixado ele vir para o Rio por causa da violência e isso não saía da cabeça enquanto estava ali naquela rua deserta.

Ouviu um som de batidas de funk vindo do final da rua. Não demorou pra que um Chevette marrom aparecesse. O carro vinha bem devagar e parecia ter apenas o motorista e o carona como ocupantes. Os dois com o braço para fora do veículo, batendo na lataria no mesmo ritmo da música. Matias disse baixinho: - Esses caras podiam me dar uma carona até o baile funk. – E riu da própria piada.

O Chevette parou no ponto e um homem completamente careca e tatuado que estava no banco do carona disse: - Ta rindo de quê, ô palhaço?

O sorriso logo desapareceu do rosto de Matias, que com os lábios trêmulos disse: - De nada não senhor. Tô rindo de nada não.

- Taí sozinho na porra da rua e rindo desse jeito. Só pode ser da gente, - disse o motorista, esticando o pescoço para olhar para ele.

- Não. É que lembrei de uma piada.

- Tá querendo... Valdo! Esse cara é o Polaco!

- Porra é ele mesmo! – Disse o careca, abrindo a porta do carro e indo em direção a Matias com uma pistola apontada para sua cabeça.

- Polaco? Quem é Polaco? Eu não sou Polaco, meu nome é Matias.

- Entra logo no carro, porra!

Quando caiu no banco de trás do Chevette, ele tinha lágrimas nos olhos. O careca pegou sua camisa e levantou até a cabeça, deixando a cara de Matias coberta. Alguns minutos depois, estava dentro de um barraco. Frente a frente com Balanagulha, segundo o careca, o chefe da área.

- E então Polaco? Andou sumido hein? – Disse o traficante, mascando o que parecia ser um pequeno pedaço de pau.

- Eu não sou Polaco não senhor. O senhor está me confundindo com outra pessoa, - disse Matias, sentindo as pernas bambas.

- Pára de enrolar Polaco. Tu me vendeu a parada toda malhada. Tá cheio de cliente vindo aqui me encher o saco. Eu quero minha grana de volta.

- Eu juro, moço. Não sei do que o senhor ta falando. Não sei de malhada nenhuma.

- Mas tu ta mesmo querendo virar presunto, né cumpadi?

- Pelo amor de Deus moço. Pode perguntar lá na loja que eu trabalho. Meu nome é Matias.

- Polaco, Polaco, Polaco... Tu costumava ser mais macho... ta sem teus capanga, né mermo? Aí o bicho pega pro teu lado.

- Já disse pro senhor que meu nome não é Polaco.

- Vai tê jeito não, né Polaco. Minha grana eu não vejo mais. Valdo, leva e joga na vala. Esse aí não vai mais vender pó malhado pra mais ninguém.

De volta ao Chevette e com a camisa tapando a cara, Matias chorava copiosamente e tentava convencer o careca que não era o tal do Polaco. O motorista não falou mais nada desde o ponto do ônibus, mas estava sempre com um sorriso no canto da boca.

Depois de algum tempo rodando, eles finalmente pararam e o careca tirou a camisa de Matias.

- Sai do carro, Polaco.

Ele obedeceu e viu que estavam em uma espécie de terreno baldio. Podia ver algumas construções ao longe, mas ali era completamente deserto. Com a pistola apontada para sua cabeça, ele caminhou na direção apontada por Valdo.

- Aí ta bom. Ajoelha e fecha o olho, - disse o careca.

Matias obedeceu e começou a rezar baixinho.

Um barulho no mato chamou a atenção do careca e por alguns segundos ele pensou em sair correndo, mas simplesmente não conseguia se mover. Quase uma dezena de homens armados saiu do mato e veio na direção deles.

- Mas não é que decidimos usar o mesmo lugar para apagar nossos desafetos, - disse o jovem que vinha na frente do bando.

- Po-po-polaco? – Disse o careca, quase deixando a arma cair.

- Qual é a surpresa Valdo? Até parece que nunca me viu.

- Mas você, ta...

- Tô o quê Mané? Tu que ta invadindo minha área pra ficar desovando presunto.

Ao chegar mais perto, o jovem encarou Matias, que estava com os olhos vidrados e a boca semi-aberta.

- Que porra é essa? Clone? De onde tu tirou esse cara?

- Olha Polaco, eu não to entendendo mais nada... – Disse o careca, agora visivelmente nervoso.

O motorista foi saindo de fininho, mas um dos homens segurou seu braço e o jogou de volta para o lado do careca.

Matias não acreditava no que estava vendo. O jovem parecia ser seu irmão gêmeo, tamanha a semelhança. Agora ele entendia porque o traficante o confundiu com o tal do Polaco. Eles eram praticamente iguais.

- Já que o careca não quer falar, fala tu ô clone do capeta. Que quê ta acontecendo aqui?

- Eles me pegaram no ponto do ônibus, me levaram para um lugar onde um tal de Balanagulha disse que queria o dinheiro dele de volta e eu-

- Fala devagar, porra! Assim eu não entendo porra nenhuma.

- Desculpe, Seu Polaco. O tal Balanagulha queria que eu devolvesse o dinheiro dele. Me falou que eu tinha vendido alguma coisa malhada. Eu disse que não era o senhor. Quer dizer, eu nem sabia que o senhor existia, mas eu disse que não era o Polaco. Então eles me trouxeram até aqui e iam me matar quando o senhor chegou.

- Levanta daí. Qual o teu nome? – disse Polaco, se aproximando.

- Matias.

- Tu é daqui da área?

- Não senhor. Sou do interior.

- E ta fazendo o quê aqui?

- Eu vim substituir um funcionário de uma loja em Cordovil.

- Passa lá pra trás que tu não vai querer ver isso.

Matias foi caminhando lentamente em direção ao mato. Quando achou que já estava perto o suficiente, começou a correr. Depois de alguns minutos, ouviu dois tiros. Continuou correndo em direção às luzes do horizonte. Só parou quando encontrou uma rua, onde pegou uma van que passava pela rodoviária. Embarcou no último ônibus do dia para Cordeiro.

- Seu Carlos pode me mandar embora, mas Rio de Janeiro... nunca mais!

Um comentário:

  1. Mas o Rio de Janeiro continua lindo... ahahaha... Gostei bastante. Manda mais!

    ResponderExcluir